A Magia do sorvete

Moro numa cidade, mas pequena cidade. No termo alemao “Stadt”, diria que seria mais uma “Dorf”. Assim sendo, moro em uma Dorf. Muitos ficarao felizes por eu assumir isso assim.
Entretanto, nao pretendo me pormenorizar na discussao entre o que é cidade e o que seria uma vila. A questao é que eu nao conheco os costumes existentes no que chamam de cidade alema, posto que cá moro, por isso a explicacao.
Nessa pequena Dorf, há tudo o que se há por aí afora na Alemanha. Nada de fantástico para se fazer, ver ou nada de fantástico para se fantasiar.
Como é de conhecimento de muitos, esse país possui as estacoes anuais muito bem definidas. Isso quer dizer que com frio, há realmente frio e tal temperatura, quase sempre negativa, predomina por longos quatro meses, além de pulular por outros dias que, teoricamente, nao lhe pertencem.
Toda essa breve apresentacao para descrever algo de surpreendente que acontece em terras germanicas: o famoso sino hipnotizante do carro do sorvete.
Oito da manha e um céu nublado. Nada espetacular para as pessoas que conhecem o tempo no norte da Alemanha. Os que cá estao sabem que a primavera ainda tem o abrir de suas flores no inverno, ou o inverno congela demais a terra com suas nevascas, de modo tao duro e conciso, que o verde nao consegue se sobrepor. Porém, algumas horas depois, seguem as nuvens seu rumo de sempre seguirem para algum lugar, ninguém sabe ao certo para onde, talvez algum refúgio onde as nuvens do dia se juntam com as nuvens da noite que circulam do lado claro e escuro do planeta, enquanto nós e demais espécies dormimos e acordamos, para nessa reuniao decidirem onde as plantas farao fotossintese e as pessoas sairao com um sorriso no rosto às 8 da manha. Fato é que às dez nao há mais nuvens. Foram-se.
Como minhocas desconfiadas da chuva, passarinhos famintos na manha, pois há pessoas de todos os tipos, seguem todos para fora de casa. Uns esportivos, outros vagarosos, mas todos aproveitando o milagre de ver o sol. E o ver mais maravilhoso que existe: o prazer de sentir o sol.
Enquanto todos se deliciam, queimam-se, ruborizam-se com a luminosidade, que de cima surge, em algum lugar, isso também nao se sabe ao certo, surge um carro quadrado, um furgao colorido de branco, azul e rosa. Tudo maquiavelicamente planejado para agradar aos olhos das criancas, menininhos e menininhas que, ao mesmo tempo, por obra do acaso voltam das escolas e jardins de infancia que diariamente frequentam.
Entao ouve-se aquele som que, a mim e acredito, suponho, em fato, nao surpreende a todos os adultos que por aí circulam e já nao possuem o olhar, e por ligacao-extensao, o ouvido da curiosidade e surpresa diante do pequeno sino do carrinho do sorvete.
Claro que o sino nao é nada demais. Um pequeno pedaco de cobre e ferro em forma de cone com um pino de ferro e uma pequena cordinha balancada de tempos em tempos pelo hipnotizador que de dentro do seu móvel quadrado, tenta controlar a vontade das criancas que sem rumo e sem algo por fazer nas ruas caminham. Claro, as criancas que sempre estao ocupadas nao sao atingidas por ele.
Aqui e adelante deliciam as delirantes vozes com as palavras que, como em eco ou em coro, propagam-se simultaneamente ao ouvir o duplo romper do ferro chocar-se contra o cone: “Der Eismann kommt!”
Maes e maes recebem as desesperadas maozinhas que exigem o que às vezes nem sabem o que significa, porém sabem que se levarem o metal até à mao estendida no pequeno furgao quadrado, receberao o sorvete que desejam.
Sorrisos por todos os rostos pequeninos, que lambusados, seguem de volta às suas casas. O metal continuam a tilintar. Talvez para reforcar sua presence e manter o encanto de trazer pequenos para perto de si, talvez para já tentar alcancar aqueles que ainda nao o ouviram.
Também há aqueles chorosos por nao receberem nada. Porque o som é hipnótico e eles sabem que ao tilintar tem que receber. Nada recebem. Choram. Mas sao poucos e nao sao notados pelos contentes lambusados.
O sol se poe e nao se sabe, mesmo com todo o avanco cientifico-tecnologico existente, se o sininho irá passar de novo por essas mesmas maozinhas ou se fará nova clientele e alegria em outro dia de sol. O importante é sempre ter umas moedas quando voce tem uma mao pequenina perto de si, pois nunca se sabe quando o badalar fará aquela vozinha dizer: “Der Eismann kommt!”.

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